Nasci
numa tarde chuvosa e úmida, na fazenda São Mateus. Minha mãe
bufava, ou rouquejava e nós saindo um a um. Passávamos em
túnel estreito, escuro e rolamos ao chão; uma cria atrás da
outra. Finalmente, éramos oito irmãos e quatro irmãs, doze
qué-qué-qué. Que ninhada! Para minha desdita, fui o
filhotinho mais fraquinho. Os demais, logo, logo se
desvencilharam dos invólucros protetores, arrebentaram o
cordão umbilical e estavam mamando nas tetas recheadas de
colostro. Hum-hum-hum! Custei um pouco a me
libertar e corri com perninhas bambas para sugar leite
quentinho, mas... Fui empurrado, pisado e expulso.
Escorreguei por cima dos outros, fui parar longe. Voltei,
tentei, tentei e consegui, mas quase nada sobrou para mim.
Ah, que gostoso o leite da mamãe! Depois veio a noite, pra
mim sobrou o cantinho mais frio entre pernas dela, enquanto
os outros estavam quentinhos aninhados na sua barriga. Em
poucos dias, todos cresceram, menos eu que fiquei miúdo,
excluído. Aí, apareceu a cinco dedos. Magra e muito alta. Vi
que era boa de coração, sorriu para mim, curvou-se sobre a
cerca que dividia nosso mundo e pegou-me no colo. Credo! que
focinho amassado, o dela! A criatura apalpou-me entre mãos.
“Nossa, vai me matar agora”, pensei, mas não foi assim. Ela
falou numa língua desconhecida, mas entendi pela doçura:
Coitadinho, tão pequenino, fraquinho vem comigo. E me
arrastou para longe dos meus irmãos, me aquecendo, me
confortando, murmurando palavras meigas ao ouvido. Ela
chamou “mãe!” Vou cuidar deste porquinho, me dá um leite!
Logo, veio com um vidro, cheio de liquido branco, aparecendo
uma ponta como a teta de minha mãe. Estava quentinho:
é-um-é um-éum! — é meu jeito de mostrar satisfação —
mamei tudo.
Tempo vai, tempo vem... “Chuva miúda não
mata ninguém...” Dias e noites, muitas luas foram e vieram;
sóis, também. Eu sempre ao lado de minha dona que me adotou
para tudo: no trabalho, na folga, nas brincadeiras, no sono.
No princípio, dormia ao seu lado; mais tarde ficava aos pés
da cama e, quando muito gordinho, roncava num colchão de
palhas de milho, na pocilga. Eu comia muito fubá, restos de
comida, insetos, cascas de frutas, milho moído e
principalmente muito leite na gamela. Que bom! Estranhava
minha dona cobrir a pele com uma segunda pele que chamava
vestido. Eu não me dou bem com isto; é estranho, meu pelo
liso, amarelinho, com pintas brancas, me basta. Ela costuma
me dar mingau de fubá no coité. Gosto de repousar meu queixo
na perna dela. Os melhores momentos se dão quando ela canta
em voz baixa seu amor por mim. Não a deixarei nunca... Minha
dona, minha amiga, pronto, basta-me! Adotou-me, melhor pra
mim. Aliás, grande é a família feiosa, para meus olhos: uns,
são mais altos; outros, mais baixos e gordinhos; uns,
violentos, me chutam; outros me fazem carinho e vou levando
de mansinho,
culé, culé. De vez em quando, dou uma fugida ao
local dos meus iguais, furo um buraco na cerca e me chafurdo
gostosamente no lamaçal, com meus irmãos. Minha dona corre,
me apanha me chama ‘porco’, não entende que sinto muito
calor, preciso da lama pra me refrescar. Ah, que delícia
quando ela me joga água!
— Tome meu Lé, tome! — Me dá palmadas
carinhosas.
Assim fiquei sabendo meu nome Lé. Ah, ela me
dava restos de comida, leite azedo, com fubá e fui
crescendo, crescendo. Às vezes, íamos visitar a vara na
mangueira era uma zoeira só. Minha turma crescia bem mais
rápida do que eu, talvez porque espojassem o tempo todo
naquele barro e fossem livres para mamar toda hora o leite
da minha mãe, 'porca'. Um dia, sem nenhuma graça, minha mãe
adotiva me deu batata quente, me queimou o céu da boca,
corri pra beber água. Ela riu e pediu desculpas, mas tinha
instantes de má, como pôr pimenta no chuchu só pra me ver
soprar, correr desesperado para beber água.
Bonito sou eu, com meu lindo focinho.
Minha amiga anda ereta. Suas patinhas de cima são
desagradáveis de se ver, quando me alisa, ou se põe de
quatro, para brincar "Vamos brincar meu Lé!!!" Aí ela me
imita, grunhe e corremos pelos quartos e salas: Eu com meu
oinc-oinc-oinc e ela gritando: ai-ai-ai a onça
vai te pegar! E me pegando pelas pernas se levanta
aconchegando-me ao colo. Vida boa... Fico tão feliz quando
ela pega da viola e toca para mim.
Gosto de ir pro terreiro infernizar o cachorro, mordendo ora
seu rabo, ora a orelha; rouquejar para os patos, fuçar
monturos aqui e ali, espantar galinhas quó-quó-quó,
interromper o cocoricó-co-coró dos galos e correr
do pavão. Dos glu-glu-glu, tenho medo. Depois de
brincar a valer, vou tranquilo, deitar numa poça de barro,
na beira do córrego, no jabuticabal. Minha Maria detesta meu
comportamento. Um homem carrancudo, o pai dela, um dia
falou: "Tira este bicho de dentro de casa, Maria!" Aprendi a
linguagem dos homens, afinal sou um dos mais inteligentes
animais, contudo, quando me espojava, na lama fresquinha,
vinha ela correndo e gritava: 'Porco'! Um apelido chato,
pois, chamavam 'porco' aquele de pouco asseio. Tenho asseio,
sim; um lugar para sujar. Era ofensa a mim, mas não liguei.
Ela me levava pro banho, tirava meus bichos-do-pé e
voltávamos a correr pelo terreiro, pomar, curral. No curral,
uma vaca me deu uma patada que resvalou pelo rabo e cortou
um pedacinho dele, perdi o lacinho, fiquei cotoco. Quando me
livrava de Maria, gostava de saltitar ao lado do boi jungido
ao braço da moenda de cana; de pegar borboletas esvoaçantes
no quintal e outras artimanhas, porém, um dia fui mexer numa
corda que não era corda, era cobra; quase morri. Felizmente,
a picada pegou na minha unha. Minhocas e os insetos são
gostosos. Sou bom pra comer, como de tudo: cascas, frutos,
raízes, cana, pequenos animais, restos, capim e outras
gostosuras. Que pena que minha dona não possa fuçar! Seu
nariz e fraco, mas seus cinco dedos são muito bons para
pegar coisas. Só tenho quatro dedos em cada pata e só uso
dois de cada.
Um dia o velho falou sério: “Maria,
vem cá!” Ela foi correndo ao carrancudo. "Vamos comer este
leitãozinho no Natal, ou na virada do ano. Acabei de vender
a porcada, tem peste suína na Cachoeira".
Meu Lé, não! Maria correu para sua mãe. — Mama, papai quer
comer meu Lé!
— Deixa minha filha, eu cuido disso, ninguém vai comer seu
Lé.
No dia seguinte, fui a chiqueiro nada mais havia lá, agora
era eu e a amiga só. Cresci e cresci, ela não me aguentava
no colo e fiquei cada dia mais belo, mais lustroso.
Vieram a mim dois homens mal encarados, me seguraram,
abriram um canivete e me cortaram lá atrás, Que dor
horrível, desesperadora! Guinchei, lutei, chorei, mas
puseram um joelho na minha cara, enquanto o outro arrancava
minhas bolinhas e as jogava fora para cachorros comerem.
Depois, passaram sal grosso no ferimento e me soltaram.
Corri gritando de dor, sangrando. Minha dona (e amiga)
correu, me pegou, fez carinho e me lavou; ai, que dor!
Fiquei doente, não queria comer. Ela me deu remédios, limpou
minha ferida. "Tadinho do meu Lé!" Eu não gostava de ser
chamado 'porco', pois, pareço demais com os humanos, Minha
cara é diferente, é mais bonita. Eu me enlameio porque sinto
muito calor, em compensação minha dona tem os pés gelados e
me chama para esquentá-los, enquanto costura. Para isto,
sirvo. Não é?
Sarei daquela horrível ferida, fiquei
maior, mais pesado e engordava a olhos vistos. Andava em
volta da casa pelo quintal. Saudade de brincar, correr atrás
das galinhas e outras travessuras. Quando minha mãe 'humana'
chamava meu Lé, eu corria e deitava aos seus pés, os
esquentava e dormia, enquanto ela trabalhava, costurando
roupas e lençóis, cantava: Tatu tá lá no morro / tá
danado pra cavar / outra vez tatu, / me ensina cavoucar.
Fui ganhando mais e mais peso, até sentia grande dificuldade
em subir a rampa da cozinha, minha visão do mundo era nas
réstias das pálpebras. Maria me chamava eu acudia e a amava.
Subia a escada na maior dificuldade. Depois, não voltei
mais, fiquei ao relento mesmo. E o tempo passou e eu cada
vez mais gordo, diziam que estava no ponto. Que ponto? Não
entendi. Pouco depois desta fala, num dia embruscado, sem
pássaros no céu, sem pio do trinca-ferro, ouvia-se o
chorocar tristonho fuóó, do macuco, na mata. Meu
coração triste disparou: "Vem meu Lé!" Fui. Desta vez
tiveram que me ajudar a subir a escada de pedra. Meu peso
perto de quinze arrobas; no ponto... Minha dona esperava na
entrada. Ouvi o chinchinar do carro de boi
ôa- ôa-ôa ô-ôa, do carreiro e depois o silêncio.
Não entendi o que se passava. Minha dona entrou casa
adentro, sempre me chamando, "Lé, lé, lé, lé! Vem meu Lé,
vem!" E eu atrás, em total confiança. Atravessamos a casa e
no alpendre estava parado o carro de bois com a mesa
recostada na altura do último degrau de pedra. Fizeram uma
passarela para eu entrar nela. Recuei, desconfiei da
armadilha. Minha amiga, minha dona entrou para me inspirar
confiança. Acompanhei-a... Ela, então, pulou da esteira para
o cabeçalho e fecharam o vão, atrás de mim. Agouxe,
agouxe incitou o carreiro. Os bois em sincronia
arrancaram e o carro chiando nos cocões: Tá pesaaaado!
aaado! Eu tinha lágrimas nos olhos, meu destino
selado... FIM.
Adeus Maria das Dores / Da fazenda
São Mateus / Sob a esfera luminosa /
Ficarei com todos meus / Esperarei
ansioso / Para brincarmos com Deus.
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