ZERO e o amigo cigano

por Asséde Paiva
Rev.Acir Reis 25/05/06

postado no Benficanet em 11/12/2017

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O que eu sou é um nada;
isto dá para mim e para o meu gênio
a satisfação de olhar a minha existência no ponto zero;
entre o frio e o calor,
entre a sabedoria e a estupidez,
entre alguma coisa e o nada, como um simples talvez.
(Werk)

 

Plaft! Plaft! Os tabefes fizeram aquele barulho de saco cheio d’água quando arrebenta no chão. Atordoado, o atingido deu dois passos atrás em equilíbrio instável.

— Sai daqui, pilantra! — Rugiu o brutamonte e deu um empurrão final, jogando o coitado para além da calçada, onde estatelou, de prancha, no meio-fio.

            — E não volte mais, senão!... — Deixou pairando no ar a ameaça de mais surra.

            — Rá! Rá! Rá! — relinchou para o colega leão-de-chácara.

            O coitado levantou-se devagar, sacudindo a poeira invisível da calça amarfanhada, disse meio grogue: — Eu sou homem, não aceito desaforo! Comigo, não! — E tentou avançar. Foi, porém, detido por braço forte. Alguém lhe sussurrou no ouvido: “Não tente, vai apanhar mais.” O bêbado, pois ele estava totalmente alcoolizado, contentou-se em repetir: — Eu sou home! Não levo desaforo para casa... — E arrematou: — filho-da-puta!

            O sujeito que o acudira levou-o meio arrastado a atravessar a avenida Rio Branco. Estavam frente à boate Assírius, de onde fora retirado à força, por importunar a clientela.

            A Cinelândia, naquele tempo, fazia jus ao nome, pelas luzes feéricas, pelos cinemas, bares, boates e pela intensa vida noturna. Ao atravessarem a rua 13 de Maio, o ébrio perguntou, trôpego nas palavras:

            — Por que está me ajudando? Não te conheço! — Notou que o solícito estranho era jovem, forte, usava chapéu com abas caídas e tinha um brinco enorme na orelha esquerda.

            — Por nada, sei não, é simpatia. Não gostei da covardia que fizeram com você.

            — Leia aquela tabuleta: Bar Cigano! — exclamou o bêbado, apontando em direção à rua Senador Dantas — tomemos uma pinga, minha garganta está seca como o Saara.

             —Vote! cigano coisa nenhuma — respondeu o estranho, com cara de nojo — aquilo é um pé-sujo de última categoria. Porém, o Amarelinho[1] é bom, você precisa de um café bem forte e amargo. Chega de álcool, por hoje.

            Aproximaram-se do balcão, o ajudante pediu um café especial para o bêbado e uma mistura excêntrica, que chamou de bomba atômica, para ele.

            O borracho sorveu com relutância o café sem açúcar e foi chamar-pelo-gregório meio derreado no meio-fio, abraçado no poste: uuuuuóóóóóó.

            O socorrista degustou cachaça misturada com Cinzano[2], conhaque São-joão-da-barra[3] e gotas de Fernet[4]. Voltou a ajudar o mamado que estava torto como um poste abalroado.

            — Como te chamas, amigo? — perguntou o estranho.

            — Eu sou Ninguém. Pode me chamar assim. Eu sou nulo! Sou zero, ou melhor, sou um homem invisível, tenho este dom; o dom da invisibilidade... ninguém me vê...

            — Não entendi, explique-me, por favor!

            — Ninguém gosta de mim, nem as putas me toleram. Então eu sou um poço de fracassos. Todos os dias tenho que jogar meus fracassos no poço sem fim.

            O bom samaritano o interrompeu: — Tem onde dormir?

            — Não! vou ficar aqui mesmo.

            — Você precisa de um pouso. Vamos procurar um hotel. Oh! belo anel o seu. Vende? — perguntou, enquanto examinava a pedra engastada no aro de ouro.

            — Qual é o seu nome? — perguntou João-ninguém.

            — Josaphat ou Josa. Me chame como quiser.

            — Por que usa dois nomes?

            — Esquece, isto é assunto de meu povo... Tenho um terceiro nome que minha mãe soprou em meu ouvido quando nasci, serve para espantar os maus espíritos. Só ela sabe.    Josa forçou o bêbado a se levantar, segurando-o pela cintura.

            — Conheço o hotel São Paulo, não é longe, fica à rua Gomes Freire. Lá é barato e bom. Tem algum dinheiro?

            — Não, não tenho, fui roubado na boate pelas mulheres que dançavam furando aquele cartãozinho de minuto em minuto.

            — Está bem, pagarei como empréstimo. Se você não tiver dinheiro, me entregará esta pedra verde. — Referia-se ao anel que o bebum usava.

            Dirigiram-se ao hotel, atravessando o Tabuleiro da Baiana, no largo da Carioca. À rua de mesmo nome, perto do bar Luís, um convite quase irresistível do bicudo:           — Adoro chope escuro, tomemos um só.

            — Fecha a boca, imbecil! Está babando na minha camisa, pudim de cachaça!

            Passaram pela praça Tiradentes, do outro lado, no 39, a gafieira Estudantina tocava o xote No-meu-pé-de-serra. O borracho queria ir, foi dissuadido. Adentraram na visconde do Rio Branco, percorrendo-a até quase o fim. O Hotel ficava na esquina desta rua, com Gomes Freire. Considerando a aparência, o hotel parecia regular, mais para cabeça-de-porco.

            — Antes de entrar, me conte um pouco da sua história — pediu Josa. O outro não se fez de rogado, porque bêbado gosta de confidências. Aquele lamuriava e chorava ao mesmo tempo. Tatibitate, desenrolou sua vida.

            — Meu nome é Oziel, o zero; zero à esquerda da vida. Desde que me lembro sou absolutamente nulo e excluído. Na escola, não me chamavam para brincar; nos jogos, me deixavam de fora; no futebol, fui perna-de-pau; o exército me dispensou por excesso de contingente. — Parou para tomar fôlego. — Nas reuniões, ninguém pede minha opinião e, nos negócios, meus sócios sempre me passam pra trás. As garotas nunca me querem; jamais tive uma namorada e nem na zona sou chamado para fazer-neném. O michê[5] para mim é mais caro. Que vexame! Quanta vergonha passo... Se não sou um zero absoluto, que sou??? Imagine, como filho do meio, todos os favores e benefícios meus pais davam para o primogênito ou para o caçula. Para mim, só obrigação e serviços. Zombavam da minha maneira de ser: retraído, inibido, complexado e sempre nos cantos, conversando com seres imaginários. Eu sofria e como! Trabalhava, trabalhava e às vezes apanhava. Meu pai me expulsou, não saí na hora, mas quando quis, fugi de casa. Agora sou espectador da vida. Assisto os acontecimentos, não participo... O ditado que diz : “Há sempre um chinelo velho para um pé cansado” é maroto, conversa fiada.

            — Não é tão mal assim, eu nunca tive um anel como o seu, sei que é valioso. Você é o tal que é infeliz no amor e feliz no jogo?

            Ele deu um gemido ou rosnado de pura revolta. — Sou infeliz em tudo que me meto. Deus deve ter esquecido de mim quando me pôs no mundo. Este anel, por exemplo, não ganhei, nem comprei: achei-o na praia, as ondas o trouxeram para mim. Mandei avaliá-lo e sei que é caro. Ninguém o compra, nem aceita troca, porque pensa que é roubado ou falso. Anel de pedra-verde na mão de pobre é caco de garrafa.

            Chegaram ao hotel, onde o porteiro, pelo aspecto do futuro hóspede, exigiu o pagamento adiantado. — Se não tem dinheiro, deixe o anel como garantia. — Ele também notara a beleza da jóia e sabia ser cara.

            — Não é preciso — disse Josa — pago a diária para ele. — Sacou da carteira uma nota de duzentos cruzeiros. Ele parecia abonado.

            O porteiro recebeu, deu o troco e entregou-lhe a chave presa num enorme pião. — Para que não esqueçam a chave no bolso — disse a guisa de explicação.

             Duzentos e três, o número estava gravado no pião.

            O elevador estava quebrado, subiram uma escada de ferro, em caracol. O quarto era o último do corredor; as portas, em duas bandeiras, abriram com simples empurrão. Josa ajudou o novel amigo a se despir, aliás, ele estava mal das pernas. Deu-lhe um banho de chuveiro bem frio e jogou-o na cama. Ele caiu como um saco de farinha, quase desmaiado.

            — Até amanhã! Voltarei para levá-lo a passear por aí. Tranque bem a porta e cuidado. — Avisou enquanto o som dos passos diluía no corredor.

            No dia seguinte, Josa reapareceu lampeiro. Oziel, o João-ninguém, tinha ficado até a tarde sem sair do quarto, curando-se da carraspana. Perdera o café da manhã.

            — Descansou muito, vamos almoçar e passear por aí! — Intimou Josa.

            Na portaria, pagou mais uma diária antecipada e saíram. O porteiro olhara com avidez para a pedra maravilhosa, no indicador da mão esquerda de Oziel.

            Depois de lauto almoço no restaurante giratório da praça Tiradentes, perambularam por ruas diversas, sem norte. Pegaram ônibus, destino Copacabana, para verem as moças de maiô. Desceram na avenida Prado Júnior em direção ao Lido. Admirando as vitrines chegaram à praia e se sentaram nos bancos do calçadão. Compraram cocos numa barraca e enquanto se deliciavam com o ir-e-vir das beldades, tomavam água em canudinhos.

            — Aquela ali! — disse Josa — é um chuchu; não, é uma uva, está dando-bola para mim. Vou atacar...

            Oziel olhou à esquerda, donde vinham três moças. Quando elas se aproximaram, Josa, serelepe, levantou-se rapidamente e entabolou uma conversação. Oziel, ao lado, permaneceu quieto. Enquanto durou o bate-papo, ele pouco se aventurou a dar algum palpite, de fato era solenemente ignorado pelo grupo. Ao se despedirem, uma delas marcou encontro com Josa. Oziel, como sempre, foi menosprezado.

            — Viu como sou invisível? — interrogou Oziel. — Elas nem se dignaram a notar que eu estava lá, nenhuma flertou comigo. É assim, meu caro, não existo! Minha invisibilidade é inegável. Sou aquele que segura as cartas pros outros jogarem!

            — Ah, boboca pessimista, seja atrevido, sem ser estúpido! As meninas gostam de rapazes ousados, falantes, desinibidos, bem trajados e preferencialmente endinheirados.

            Nos dias que se seguiram, passearam pelo Rio de Janeiro em pontos turísticos: Corcovado; Pão de Açúcar; Zoológico e outros lugares. Foram a boates; ao baile no Bola-preta; também à rua Alice, em Laranjeiras, para conhecerem as meretrizes classe “A” ou chiques; foram ao Mangue, onde fornicavam as ‘meninas’, classe “B”, da Vila Formosa. Entre todas, Josa reinava, soberano, porque tinha charme ou it. Por outro lado, Zero, sem chance, enraivecia-se. Era zero mesmo... Definitivamente zero, nulidade.

            Certa feita, numa quermesse no outeiro da Glória, Oziel se dispôs lutar, conquistar uma garota e para destravar a língua, superar a introversão, excedeu-se no álcool. Algumas moças, fazendo footing, se aproximaram. Oziel, para se vangloriar, tomou a dianteira e pôs-se a falar, coisas de rapazes em paquera, banalidades. Em instante, uma das moças cortou-lhe o discurso e disse desdenhosamente para outra, em mortal humilhação e ferina indireta para ele:

            — Maria, és tão antipática, não vou com tua cara de jaburu!

            — E nem eu com a tua, baranga, bucho! — retrucou Oziel alterado, e tartamudeou algumas besteiras adicionais. Sabia também ser desaforado, se desafiado.

            Constrangimento geral; o céu, plúmbeo; o ar, pesado; sorriso de deboche congelado; uma puxou a outra e saíram de fininho e rápido, com risos contrafeitos, deixando-os sós. Oziel fechou os olhos “Não sou tão feio assim, será que sou...?” Pediu ao mundo que se abrisse aos pés e o engolisse de vez. Mas a terra não se abre para qualquer um, então sobrou para ele imensa e profunda raiva de si mesmo. “Por que fui nascer?”

            Josa falou, conciliador: — Você deu uma resposta dura, acho que foi até grosseira. Ela mereceu, mas deste jeito jamais arranjará namorada. Seja terno, homem! Mulheres, carinho e flores combinam muito.

            — Da próxima vez que acontecer, serei mais gentil — disse Oziel, com uma ponta de ironia. Simulou dor de cabeça para ir embora.

            — Leve este dinheiro para pagar o hotel. — O amigo estendeu-lhe uma nota de cem cruzeiros que ele pegou, pois para isto não tinha mais pudor.

            No fim da semana, Josa convidou: — Vamos conhecer um bar verdadeiramente cigano. Está pronto? Quer ir?

            — Sim, vamos, então!

            Na rodoviária, à praça Mauá, tomaram ônibus para São João de Meriti. Era daqueles que faziam o trecho Caxias—Meriti, linha do interior da Baixada. Em Parada de Lucas, deixava a avenida Brasil e seguia pela antiga Rio—Petrópolis até Caxias. Cortava a cidade, e daí em diante rodava, em estrada de terra macadamizada até São João de Meriti. Em um ponto denominado Fazenda Velha[6], Josa tocou a campainha, solicitando a parada do ônibus. Saltaram. Local desabitado com, no máximo, dez casas.

            — Ainda não é aqui, temos chão pela frente. Vamos à Covanca[7], a pé.

            Seguiram numa estrada vicinal, estreita, sinuosa como cobra em movimento e com pouquíssimos habitantes. Uma casa aqui, outra acolá e mato, assa-peixe, leiteira malícia.

            — Andamos uns cinco quilômetros, onde estamos? — perguntou Oziel, já um tanto cansado e com medo daquele ermo.

            — Perto! — respondeu curto, Josa. — Já passamos a Vila São João.

            Mais uma hora de caminhada, pouco menos, após curva acentuada, desceram pequena elevação, viram luzes tremulantes, Josa falou: — É aqui!

            Oziel reparou que estavam perto de uma carroça fracamente iluminada. Havia muitos carros de passeio ao derredor. Sob a claridade do luar, algumas tendas toscas. Duas lanternas tremeluziam nas laterais da carroça, como que os convidando a entrar. Dentro vinha o som de guitarra, alto, harmonioso, tocando ária cigana. Oziel estava ansioso e trêmulo, esperava outra derrota. “Quem espera sempre alcança”. No frontispício estava escrito em grandes letras: U vurdon[8]. Tinha cores deslumbrantes, fortes, desenhos em arabescos.

            Josa deu três palmadas rápidas, linda moça afastou o reposteiro de pesada lona e veio atender. — Olá! Por onde tem andado? Quem é ele? — apontou Oziel, com aquele ar displicente e de pouco-caso.

            — Viajei, depois fiquei na cidade dias, este é meu companheiro, chama-se Oziel, viemos assistir seu show. — Estendeu-lhe nota de cem cruzeiros. Explicou ao amigo que com pagamento adiantado podiam comer e beber à farta.

            Lola, assim se chamava a moça, afastou-se para o lado e mandou-os entrar. O interessante é que não havia cadeiras. Somente tapetes, esteiras e almofadas dispostas em torno de um palco de madeira, longitudinal à carroça. Os frequentadores lado a lado, circundando o tablado, gritavam e riam e batiam palmas. Bravo! bravo! Uns assoviavam. Dois indivíduos passaram a tocar freneticamente suas guitarras espanholas. Os tilintidos, os pastrim pins reverberavam e penetravam nos ouvidos de Oziel. Era melodia agradável. Uma mulher sensual coleava, saracoteava e rebolava entre os convidados, com um copo de estanho e garrafa de vinho na mão. Sorria, despejava o líquido nos copos dos fregueses. Era uma cigana ou pelo menos aparentava ser, pelos brincos e outras bijuterias que usava, bem como pelo vestido longo, estampado, amplo decote e mangas fofas.

            — Ah, Faraona! — gritavam os clientes — dê-nos um gole de vinho! — Todos foram aquinhoados, menos Oziel porque era invisível...

            Significantes eram os enfeites nas paredes: pequenos tachos, frigideiras, panelas e chaleiras, de estanho e/ou cobre. A metade da cobertura (logo se saberia o porquê) tinha uma variedade de utensílios de cozinha pendurados, além de ânforas, bilhas, moedas, estrelas, luas e sóis de cobre.

            Afastando a cortina de chita estampada de flores, pisou no palco a dançarina saltitante, vestido bufante, coberto de refolhos, tirando tralalás das castanholas, distribuindo sorrisos a mancheias. Seus pés esvoaçavam. Batia forte com o salto de madeira na tábua, fazendo um som peculiar, imitativo do flamenco. Seu corpo contorcia-se sensualmente, o povo extasiado mantinha os olhos vidrados, fixos nela. Alguém lhe estendeu um pandeiro, livrou-se das castanholas. Rodopiava, pulava e vibrava as soalhas metálicas. Abandonou o pandeiro e tamancos, passou a produzir estalidos com os dedos (ou com a língua) como um revólver calibre .38 e batia com os pés no assoalho de um modo peculiar. As miçangas de ouropel, em sua tiara, rebrilhavam à luz das lâmpadas.

            Súbito, metade da cobertura puxada por dois homens (no sistema de engrenagens e roldanas) deslizou sobre a outra suave e lentamente. As lâmpadas se apagaram, o interior da carroça foi inundado pela luz da lua. Momento de êxtase, de rara beleza, magia e encantamento. Antes do reiniciar o show ela perguntou: — Quem quer bater cartas, ler as mãos, ver a sorte na borra de café? Na bola-de-cristal, quem vai? Daj[9] está na ofisa[10].

            Oziel estava completamente tomado pelo inesperado e fascinado pela beleza morena de Lola, que aumentara sob o luar. O sorriso dela mostrara os dentes perfeitos, alinhados. A filha da Faraona hipnotizou a todos. Fim da apresentação, as luzes foram religadas, moedas e notas voaram para a moça. Ela veio sentar-se ao lado de Josa e puseram-se a conversar sem dar a menor atenção a Oziel, porque ele era invisível, não é?             Inesperadamente ele se levantou e falou trêmulo: — Vou saber o porquê da minha mala suerte — e sem que ninguém o detivesse, sumiu atrás do cortinado da ofisa.

            A sibila e ele se olharam. Os olhos dela, negros, maravilhosos, candentes como dois carbúnculos, desnudaram-no da cabeça aos pés. Ele sentiu a alma desvelada, nos mais recônditos pensamentos. Viu que era muito bonita, tinha os dentes encastoados em ouro. Sorria, matreira. Ele baixou os olhos timidamente. O que se passou? Segredo, mas Oziel mostrava semblante menos taciturno quando voltou. Em sua cabeça ecoavam as palavras da vidente: “Ainda encontrarás um grande amor, pois as cartas não mentem jamais”.

            No ápice da festa, gritaram os fregueses: — A dança do fogo! A dança do fogo!

            Todos abandonaram a carroça e correram para fora, até aqueles que estavam nas tendas saíram. As moças, capitaneadas pela faraona, dançavam loucamente, ao som de uma concertina. Depois, cansadas, foram se sentar. Aí, os homens as substituíram. Quando os primeiros raios de sol faziam amanhecer, cerravam-se as cortinas da noite, clientes, convidados, artistas se dispersaram.

            Em consequência, Josa e Oziel tornaram-se assíduos naquele bar extravagante, tão peculiar, mágico, místico. Oziel, sempre pessimista, dizia que jamais conseguiria despertar interesse nas mulheres. Discretamente, Daj passou a ser generosa com ele, enchendo-lhe mais a caneca de vinho. Curioso, isto ele não notou, tão convencido de que era portador de um repelente de amor. Sofria. Seria sadista? Um dia ele disse ao amigo:

            — Vou parar de andar contigo. Você capitaliza todos os olhares, eu não sou mais que uma sombra ao seu lado, não posso competir. Prefiro ficar com minha frustração, com minha transparência, enfim, isolar-me. Tenho inveja de você.

            Josa zangou-se: — Já estou cansado de suas lamentações. Se quiser ficar só, fique! Então, trate de me pagar. Se não tem dinheiro, me dê o anel.

            Oziel ficou muito magoado, pois era carente e não esperava aquela demonstração de raiva sobre ele. Virou as costas, largou o amigo falando sozinho, saiu.

            — Volta Oziel, estou brincando, que pavio-curto!...

            Ele seguiu adiante. Desorientado, deixou o bar, suas luzes e alegria. Como vivia à custa do amigo, para voltar à cidade teve que se virar pedindo carona aos donos dos carros que passavam. Chegou ao Hotel, cansado, abatido e desolado. Foi barrado na portaria, porque o porteiro mais uma vez exigiu pagamento adiantado.

            — Não tenho dinheiro — disse — mas amanhã vou vender este anel e pagarei até o último tostão e me sobrará muito.

            O porteiro deu uma olhada com pouco-caso, sabia que o anel era de esmeralda, precioso. Mentiu: — Isto não vale nada, mas pode ficar por hoje. — Deu-lhe a chave do quarto, o de sempre, 203.

            Tarde, muito tarde era. Talvez quatro horas da manhã. Um vulto esgueirou-se pelo corredor, indo ao quarto 203. Sorrateiro, abriu a porta com chave-mestra e ligeira pressão. Oziel, que naquele momento estava tendo um pesadelo (sonhava que estava voando e ninguém reparava nele), acordou. Com olhos sonolentos, semicerrados, viu o intruso. Perguntou: — Josa? — O mundo desabou-lhe à cabeça, estrelas pipocaram. Desmaiou.

            Quando acordou, no dia seguinte, tinha os cabelos empapados de sangue e uma enorme e latejante dor de cabeça. Levantou ainda tonto, foi à pia, lavou o rosto, limpou o sangue coagulado, aí se lembrou de que algo acontecera. Apalpou-se, nada havia quebrado, mas ao esfregar as mãos notou a falta do anel. “Bem aquele tratante do Josa veio aqui à noite e roubou-me”. Vestiu-se e foi comunicar à portaria o fato.

            — Como assim! é golpe seu, está sem dinheiro e não quer pagar a diária!

            — Olhe o galo que tenho na cabeça, juro que fui roubado! — exclamou Oziel.

            — Vagabundo!... fora daqui! — O porteiro empurrou-o para a rua.

            Mais uma vez, Oziel estava sem dinheiro, sem amigos, sem a jóia, sem lenço nem documento.

            O tempo passou e Oziel, decadente, tornou-se mendigo, dormindo entre batentes das portas e nos bancos de jardim, no hotel das estrelas. Na madrugada, remexia sacos de lixo procurando restos para comer. De dia, se obtinha alguma esmola, comprava um pão e tomava café; se não, ficava com fome mesmo. Fome de pobre se adormece com cachaça.

            O mundo dá muitas voltas e Oziel tornou-se viandante. Um dia, se viu nas proximidades do bar cigano. Quanta recordação lhe veio à mente. “Por que fora lá?” Estava escrito... Josa e ele não se reviam há muito.

            Josa agora era gerente do bar, casara com Lola, a filha da Faraona.

            Naquele dia, as parcas[11] resolveram juntar os três indivíduos: Oziel, Josa e o porteiro. Josa viu entrar o homem parecido com o porteiro do hotel São Paulo, resolveu lhe perguntar por Oziel. O cliente não o reconheceu e levantou a mão para pedir vinho. No dedo, um anel de esmeralda brilhava. Josa sabia de quem era, foi direto:

            — Roubou o anel do meu amigo, hein! entregue, já! já! — Começaram a lutar. O gatuno foi dominado com a ajuda de outros fregueses. Josa tomou-lhe o anel, pondo-o contra luz para melhor observar. Era inconfundível a jóia.

            — Miserável! onde está Oziel? que maldade fez com ele?

            Um segundo após entra o mendigo Oziel, irreconhecível por longa barba e cabelos desfeitos. Ele não viu o porteiro, ladrão, sob duas ou três pessoas mas, sim, a jóia na mão do amigo. Tirou conclusões apressadas, erradas, injustas. Voltou-se sobre seus passos e desapareceu de vez, na escuridão. Não se sabe como chegou à avenida Brasil, distante dez quilômetros. Pegou o primeiro ônibus que atendeu ao sinal. Era um velho Aktiebolaget[12], sacolejante, arfante. E Oziel, pensativo, entrou.

            “Eis o que acontece quando se acredita em amizade, nunca tive nada na vida, seja dinheiro, amores, amigos, ninguém me considerou como gente, fui vencido em tudo que tentei, quando pensei que tinha encontrado um amigo, ele se revelou um ladrão. Que mais posso esperar desta vida? A cigana errou a predição: Não conhecerei o amor. Estou me sentindo velho, doente, cansado e desgostoso. O que me vem pela frente? É possível cair mais? Marginalizado pelo destino, tenho medo, sou covarde, mesmo... Deus tem uma missão para mim? Qual? Pois bem, renuncio a qualquer missão, sou livre, tenho o livre-arbítrio”.

            Nesta lucubração arrevesada, Oziel se deu por vencido e com os costados na praça XV, justamente no escadório que descia ao nível do mar, para o ir-e-vir dos pescadores às suas escunas e traineiras; para o embarque e desembarque de passageiro. De pé, no parapeito, olhava para o infinito. Então, tomou a última decisão. Cabeça oca. “Cabeça vazia, oficina do diabo”. Desceu lentamente cada degrau em plano inclinado, até seus pés tocarem nas águas da baía. Elas estavam frias, sujas, oleosas. Avançou mais dois degraus. A maré vazante findara, ia começar a preamar. Sentou-se calmamente, a água veio-lhe aos quadris. Esperou... água no peito... esperou, inerte, água no queixo... A marola encheu-lhe a boca; outra, empapou-lhe os cabelos.

            Uma cigana passou cantarolando:

 

Você é uma carta demais

No baralho da vida

Que o presente me traz.

            ....................................

 

            Interrompeu, pois observou, na sombra da água turva, o redemoinho nos cabelos revoltos... “Seria o quê?” Rapidamente, sem pensar, desceu a escadaria, segurou aquela massa difusa e puxou com força.

            “Meu Deus! é gente e está vivo ainda” — Socorro!

            Maior foi a surpresa da Faraona[13] ao verificar que se tratava de Oziel, desde que o conhecia como freguês do Vurdon.

            — Ah, meu amor... No baralho da vida, quem dá as cartas sou eu!

            O Sol nascia tal como bola de fogo incendiando o mar. Aquele dia prometia ser claro e belo... E Oziel finalmente, tornou-se visível.

 

Vede bem: eu sou eu e além de mim não há outro! Sou eu quem mata e faço viver. Dt 32,39

 

            E, no dia seguinte, cinzas, brasas e tições atestavam quão enorme e vazio era o vale da Covanca. Os filhos-da-estrada-e-do-vento haviam partido, levando Oziel, ex-Zero.

 

FINIS


[1] Tradicional bar. Fica na esquina da rua Alcindo Guanabara com a praça Floriano Peixoto, mais conhecida por Cinelândia. O bar tem este nome porque está em prédio amarelo, construído em 1921.

[2] Marca de vermouth. É o nome de uma bebida que tem como erva principal a losna ou absinthium. Basicamente, é composto de vinho, álcool, açúcar e infusões de ervas de diversas espécies.

[3] Conhaque, elaborado a partir de destilados de cana-de-açúcar e extrato de alcatrão vegetal.

[4] Elaborado com álcool, extrato de ervas e raízes aromáticas. Amargo Nacional.

[5] Freguês de prostituta ou relação sexual mediante pagamento.

[6] Antigo solar dos Teles: do comendador Pedro Antônio Telles Barreto de Menezes. À época desta estória, só restavam os pilares e as palmeiras, indicando o local da fazenda e ainda não se dera a aparição de Santa Rita de Lezuê (1953). Hoje é o próspero bairro Vilar dos Teles, sede do município de Meriti e capital do jeans.

[7] Na divisa de Caxias/Meriti. À época deste evento, lugar deserto. Hoje é o próspero bairro Jardim Primavera e pertence à cidade de Duque de Caxias.

[8] A carroça, em romani, a língua dos ciganos.

[9] Mãe.

[10] Cubículo separado da platéia por um cortinado, onde ciganos lêem a buena-dicha.

[11] Mitologia. Deusas do destino: Cloto, a que tece o fio da vida; Láquesis, que o mantém através de todas as contingências; Átropos, que o corta e ocasiona a morte.

[12] Marca de ônibus importado da Suécia. À época desta estória, o Brasil não fabricava ônibus.

[13] Os ciganos às vezes citam que são descendentes do faraó do Egito. Daí o nome gitano, gypsy, egiptien.

 

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