C I G A N Í A D A
por Asséde Paiva
- 15/07/2014

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Pensamos em intitular este trabalho com o verbete ciganidade, como significado de tudo que diz respeito ao povo cigano (origem, língua, costumes etc.), porém, vimos que este termo não existe na língua portuguesa, embora estudiosos o citem com certa frequência. Resolvemos optar por outro verbete também inexistente em nossa língua ou, pelo menos, não citado nos dicionários mais abalizados como o Aurélio e o Houaiss. Trata-se da palavra ciganíada. Este, portanto, é o título de nossa coletânea, mesmo porque traz em si, em seu bojo, a ideia de conjunto de coisas ciganas, de força singular, de manutenção de unidade, apesar da adversidade, sua exclusão pelos não ciganos e, mesmo, de saga de um povo. É o termo criado por um poeta romeno, Ion Budai Deleanu.

 

Os romenos não têm epopeias heroicas. Todas as tentativas para criá-las falharam. Em troca, possuem uma notável epopeia herói-cômica: A ciganíada, de Ion Budai Deleanu.

 

A ciganíada, com 12 cantos, é em ordem cronológica a primeira obra de valor da literatura romena. Budai Deleanu (1870-1820), homem de vasta cultura e poeta de excepcional talento, compôs essa obra em fins do século XVIII, mas não chegou a vê-la publicada. Somente em 1877 apareceu pela primeira impressa e desde então constitui o mais importante poema épico da literatura do país.

 

“A ação se desenrola em meados do século XV. Os principados Romenos viviam sob o terror das invasões otomanas, quando Vlad Tepes (Vlad, o impalador) subiu ao trono da Valáquia. Sabendo que os turcos se preparavam para invadir o seu Estado, e temendo que os ciganos, em grande número, espalhados por toda parte, poderiam servir de espiões em benefício do inimigo, resolveu reuni-los, formar um exército e mantê-los sob sua mira. Sempre desconfiado, porém, simulou uma invasão no setor em que os ciganos se achavam concentrados. Quando a ciganagem avistou os “invasores” em trajes turcos, virou logo a casaca...” In Nelson Vainer, Antologia da poesia romena: Civilização Brasileira, 1966.

 

O poema, joco-sério, ciganíada (ver canto VI na última página), não é favorável aos ciganos, pelo contrário, é depreciativo. Todavia, em Cancioneiro romeno, organizado por Stella Leonardos, Edições Portas de Livrarias, série poesia, 15, 1972, p. 100, encontramos A canção do “Bulibacha” (do turco buluk-bachi, chefe cigano), onde se dá a devida resposta ao poeta Deleanu e ressalta o pacifismo cigano. De fato a característica do povo é a paz. Você já leu alguma guerra feita pelos ciganos? Já leu alguma conquista de ou luta por terras pelos ciganos? Onde fica o país dos ciganos? Eles respondem: “Minha terra é o mundo, minha pátria é onde eu vivo, e meu lar as estrelas no céu”.  

 

E nossa poetisa Cecília Meireles retrata com profunda sensibilidade a pureza da alma cigana:

A tua raça de aventura/ quis ter a terra, o céu, o mar./ Na minha, há uma delícia obscura/ em não querer, em não ganhar.../ A tua raça quer partir,/ guerrear, sofrer, ganhar e voltar./ A minha, não quer ir nem vir./ A minha raça quer passar.//

Leiamos a Canção do bulibacha:

 

 

Nos tornastes de comédia,
senhor Ion Budai Deleanu.
Mas num mundo onde há tragédia
rir um pouco fará dano?

Turco ou romeno,
venha vinho,
companheiros,
riso em torno
da fogueira!

Deixaremos epopeias
para cristãos e otomanos:
sobreviver tem seu épico.
Que diga o povo cigano.

Turco ou romeno,
venha vinho,
companheiros,
canto e dança
a noite inteira!

Nem cobiçamos a terra
nem, guerreamos, nós ciganos.
Viva nosso povo, ileso
entre cristãos e otomanos


!

A CIGANÍADA

Canto VI

 

(In Antologia da poesia romena, de Nelson Vainer. Ed. Civilização Brasileira, 1966)

1
“Senhores turcos, piedade,
para a pobre ciganagem!
Foi contra nossa vontade
que ela pegou em armas,
para lutar, obrigada,
enfrentando vossas forças.

2
Piedade! A lua vos guarde,
Maomé viva mil anos,
que os males vos abandonem,
que Deus nos castigue agora,
se temos alguma culpa,.
Nos aprouve uma desgraça.

3
A culpa toda é de Vlad,
eu Deus lhe dê o castigo!
Ele nos pôs nesta empresa.
A ciganagem no mundo,
só quer paz, e lhe juramos
a luta não nos agrada...”

4
O príncipe Vlad notou
a covardia dos ciganos
e ordenou aos soldados
que logo entrassem em ação;
pronto soaram as trombetas,
era iminente a chacina.

5
Ao verem isto os ciganos
paralisaram-se em medo,
enquanto um cai desmaiado,
vê-se outro petrificado,
uns choram, soluçam outros,
dir-se-ia o fim do mundo.
6
Todos perdem a compostura,
menos Neico, sempre firme,
embora com muita tristeza,
mas assim mesmo abre a boca
e então começa a falar
com expressão de esperança:

7
“Arre! Não dêem atenção
à covarde alma cigana,
fiquem com nossas riquezas,
só nos deixem nossa roupa,
mas para nosso consolo,
poupai-nos mulher e filhos.

8
Também na Turquia, sabem,
vivem os ciganos de esmolas,
trabalham, pagam os impostos,
mas se armarem e combaterem,
a isso foram forçados!
Perdão, vos proteja a Virgem!


9
E honestamente falando,
que hão de lucrar nos matando?
com filhos até de colo
ficarão nossas viúvas,
nós morreremos, é justo,
eterna será sua dor.”

10
Vlad, o Voivoda, não pode
conter o riso em seus lábios.
Igualmente a soldadesca
também começa a se rir
da ciganagem covarde
que gabara valentia.
11
Neico queria falar,
Vlad cortou-lhe a palavra:
“É assim covardes, sem brio,
que vocês defendem a pátria?
E dei-lhes armas comida
e roupa, corvos malditos.

12
Pois desta vez lhes perdoo,
mas se isto repetir,
eu enforco a ciganagem!
não gosto de brincadeiras,
diz isto, Vlad, o Voivoda,
o que agora lhes fala!”

13
A ciganagem estonteada,
consciente da cilada,
entreolhava-se espantada
do disfarce dos monteses...
E enquanto se atormentavam,
Neico retoma a palavra:

14
“Perdoai-nos majestade!
Não temos culpa alguma,
quem iria advinhar
uma tal coisa — ora vejam,
os montanheses vestidos
como turcos. É de pasmar!

15
Se nós tivéssemos visto
que não sois turcos, é claro,
que nem sequer um menino
teria medo. E depois,
nem se fala o que faríamos,
ser valentes provaríamos...”
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