QUANDO OS CIGANOS ERAM AMADOS
por Asséde Paiva - 02/06/2014

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Era uma vez... 

...Então eles, os ciganos, passaram... Nossa mãe ao vê-los tomou providências defensivas, nos chamou aos gritos: “Para dentro! já, já!” Nós dois: Pedro Pião e eu. É Pedro Pião, sim, porque ele costumava se equilibrar sobre um calcanhar e girar, girar, girar e depois parar e permanecer de pé, provando que tem bom controle do corpo. Nós, repito, estávamos divertindo a valer, no paiol de milho; ficamos contrariados e desobedecemos ao chamado, fizemos ouvidos de mercador. Novamente a ordem veio lá de baixo, da varanda da casa, mais ríspida, mais imperativa: “Passa pra dentro! já falei! querem couro?” Minha mãe tinha a mão pesada e ninguém ousava desobedecê-la, principalmente quando o chamado beirava ao grito. Dispensamos a escada e saltamos da porta do paiol ao chão do curral. Caímos esparramados sobre um monte de palha de arroz, palha ainda verde/amarela da colheita recente. Esgueiramos rapidamente até a casa sede, um pouco abaixo. A nesga de sol fora definitivamente coberta por nuvens, começou a chover aos cântaros. Ficamos encharcados, só ao percorrer o pequeno trajeto entre o paiol e a casa. Tempos bons que se foram para sempre... 

“Por que ela nos chamou? Por quê?” Ela nem esperou que transformássemos nossa muda indagação em palavras, nossos olhos estavam fixos nela e estávamos aborrecidos, molhados. “Os ciganos, eles vêm aí!” Corri e os observei da janela do quarto. Fiquei só com o topo da cabeça visível, tal era a sensação de medo que me envolvia. Meus olhos nivelavam com o parapeito da janela. Por entre as quatro imensas paineiras e por entre galhos do pessegueiro, quase sem visão externa (porque um dos galhos avançava para dentro do quarto e estava cheinho de pêssegos amarelos), observei a caravana que passava.

“Que medo incrível aqueles homens e mulheres me causavam!” pensei com meus botões. Eles passavam devagar, passos cansados, arrastados, as alimárias na maioria, magras, abatidas, escorridas. À frente, um homem montado em soberbo garanhão e seus arreios prateados, enfeitados, cobertos de medalhas, grandes rosetas, me causando enorme impressão. Outros cavalos, em bom estado, seguiam amarrados pelo rabo e puxados por um batedor. Estranho, tanta gente a pé não cavalgava os animais, em pelo; depois soube que eram para negócio e deviam ser preservados. O silêncio suprimido, pela chuva que caía, e ninguém conversava, ouvia-se também ‘ploc, ploc, ploc’ das patas dos animais nas poças d’água, que enchiam buracos feitos por outras patas, anteriores dos que ali passaram antes. ‘Ploc-ploc-ploc’. Jatos de água espirravam na barriga dos animais que tinham o pelo da barriga amarelo barro. Os nômades eretos, porque não dizer altivos, não arriscaram olhar, ainda que enviesado à nossa casa. “Ah, meu Deus!” Havia eletricidade no ar, um quê de pungente tristeza... Um retrato ficou congelado para sempre em minha mente: A imagem dos caminhantes, sujos, pobres, esfarrapados, entretanto, muito dignos. Em minha vida nada me marcou tanto como aquele grupo de homens morenos, duros, inconquistáveis, com suas mulheres tropegamente agarradas aos cavalos, para garantir forças adicionais e não chafurdarem nos atoleiros. Especial imagem me feriu a retina: algumas moças muito bonitas, ao lado de verdadeiras assombrações. Os garotos menores iam sobre as cargas dos burros sendo as crianças amarradas ou dentro de balaios. As mulheres vestiam roupas muito coloridas e traziam pingentes e braceletes com enfeites de ouropel. 

Quando acabou a procissão dos caminhantes, fiquei a cismar: “De onde vêm os ciganos? Para aonde vão?” Acompanhei-os com os olhos até que dobraram na curva, lá na frente, no alto do morro. Depois viria a descida e, a seguir, a planície e o brejo e muitos outros brejos e morros. Lembrei-me do dia que o carro de bois se atolara na baixada e tivemos que ceder uma junta para colaborar na retirada do carro do lamaçal. Fiquei imaginando quanto trabalho passariam aqueles homens, a subir e descer a morraria que havia pela frente. Afinal iam, iam, iam sem destino. “Mãe”, perguntei: “Pra aonde vão?” “Não sei!... Só sei que eles passam... e seguem em frente. Às vezes voltam, mas é raro. Outros passam, mas podem pertencer a outro grupo, afinal são tão parecidos”. Daquela vez não seguiram em frente. Estavam tão cansados, que solicitaram permissão ao fazendeiro, coronel José Taperara, para acamparem por alguns dias. “Não causaremos estragos”, garantiu o chefe. O coronel estava de boa veia ou boa maré e autorizou a permanência daquela tropa errante. “Podem ficar não quero confusão em minhas terras, aproveitem para consertar uns tachos”. Então eles formaram o acampamento às margens do rio Paraibuna, onde ele fazia uma curva em “U” e apresentava uma prainha de areias muito claras, onde eu tomava banhos furtivos. Logo vi sinais de fumaça de uma fogueira e os moradores do lugar também viram. Todos ficaram entusiasmados. “Estão na fazenda do seu Zezinho!” Comentavam. Ninguém tinha coragem de contrariar o coronel, nem tinham motivos para isto, pelo menos por enquanto. O arraial chamava-se Sesmaria, e os habitantes deviam tolerar a vizinhança indesejável pelo tempo que seu Zezinho a tolerasse. Sesmaria dera origem a um lugar pacato, nulo, inexpressivo e onde jamais acontecia algo. Agora aconteceu... Os ciganos..., e também rápidas as mulheres ciganas foram à vila tentar ganhar alguns trocados, pela leitura da boa-sorte ou buena-dicha.

Nunca mais esqueci, não pude esquecer aquelas mulheres murchas, esquálidas, desgrenhadas e famintas; outras, muito gordas com decotes profundos nos vestidos estampados, batendo de porta em porta, oferecendo miçangas, moedas de ‘ouro’, pedindo algo para comer ou beber, recebendo alguns trocados pelas advinhações. Junto a elas vieram seus filhos ariscos, quase pelados, olhos vivos e penetrantes, agarrados nas saias. Tinham medo de nós, e nós deles. Todos com medo de todos. Mas um menino deles um pouco mais novo que eu (tinha treze anos), se aventurou um pouco e chegou bem perto de mim, passou a mão pelas minhas faces, com doçura, puxou levemente meus cabelos louros e compridos. Sorri amavelmente. Ele também sorriu e, de repente, esvaiu-se a desconfiança, estávamos amigos para sempre. Começou a falar rapidamente, o palavreado dele não era muito compreensível, mas deu para entender na linguagem universal dos garotos, a linguagem dos sinais de quem queria brincar. Puxei-o pela mão e fomos ao paiol. Nesta altura, outro amigo, Pedro Pião, se animou e nos seguiu. No paiol brincamos de pique, de esconde-esconde, de pular sobre o monte de milho, correr em volta das tulhas etc. Fizemos carros de bois de sabugo de milho. Cavalgamos as selas postas em bestas imaginárias; tentamos agarrar ratazanas, mas eram rápidas demais para nós. Enquanto isto, minha mãe dialogava com as ciganas. “O que querem? Para aonde vocês estão indo?” A velha cigana respondeu: “Não sabemos aonde vamos, o capitão (o chefe) é que sabe, somos caminhantes, andamos por este Brasil sem fim”. “Mas vocês não moram em lugar algum?” perguntou minha mãe. “Nossa morada é sob as tendas, ao ar livre, dormimos ao ar livre, sem paredes para nos conter; nada de lugares definitivos, todos servem para nós, até debaixo de uma árvore ficamos bem. Se hoje estamos aqui, amanhã só Devel (Deus) sabe”.

Uma vez lida a sorte dos da casa, feitos alguns negócios, as ciganas se propuseram a partir, minha mãe pediu à cigana que deixasse seu filho um pouco mais. “Os meninos estão muito alegres, nunca vi Dinho assim!” Era abreviação carinhosa de meu nome, Jair. A cigana concordou e foi com as outras para a casa seguinte e a seguinte, oferecer seus berenguendéns, fazer leitura de sorte e benzeduras a animais e pessoas doentes.

O ciganinho, meu novo amigo, chamava-se Marco, nem sei bem, não interessa para o caso, já me disseram que cigano tem até três nomes. Ele era muito vivaz e me ganhou em todas as brincadeiras. Quando ele foi procurar a mãe, deixou-me um vazio e a promessa de voltar no dia seguinte. Aprendi também, que cigano sempre mantém a palavra dada a amigos. Além disso, o amiguinho avisou-me de que eles não iriam embora naquela semana. “Tinham muitos tachos e arreios para consertarem.” E firmamos uma grande amizade, cimentada em total lealdade.

Pedi à minha mãe para visitá-lo no acampamento, ela relutou em princípio, mas depois concordou. Os ciganos se comportavam bem, não havia o que temer. Lá fomos nós, eu e Pedro Pião. Recebidos pela família Marco e outros meninos do clã passamos o dia inteiro em divertimentos variados. Jamais podia imaginar quão alegres e brincalhões são meninos e meninas ciganos, apesar da clara penúria de vida. Pude ver que os meninos têm completa liberdade e nunca são disciplinados de modo violento pelos pais. Ajudei Marco catar lenha para a fogueira, e à mãe dele, acendê-la, só não fiquei, porque anoiteceu e minha mãe, preocupada, me chamou gritando lá do alto do morro. Pedro Pião tendo pais mais liberais tardou a voltar.

Foram dias de grande encantamento e adorei as meninas, como eram lindas! Amei a vida cigana e fiquei amigo de todos: crianças, jovens e velhos daquele grupo. Admirei os velhos ciganos conversando com os mais novos e o respeito devocional dos jovens pelos velhos. Ouvi muitas “paramichas” (estórias), também vi que no acampamento reinava alegria, apesar da necessidade alimentar que passavam. Entretanto, resolviam seus problemas com a caça e a pesca. Pude acompanhar as evoluções das moças dançarinas, ouvindo os tralalás das castanholas, os sons dos pandeiros e maravilhar com a música dos violinos. Enfim, apaixonei-me pelos ciganos sem saber; adorei aquela vida ao ar livre, praticamente sem preocupações com o dia de amanhã. Os velhos e os casais amavam suas crianças, aprendi a trabalhar o ferro e fazer cestas de vime; consegui domar um cavalo e cavalgar com destreza, sem machucar o animal e observei que ciganos amam também os animais. Fui fazer bonito no arraial cavalgando belo corcel e fazendo aflorar gritinhos nas meninas. Não sabia, estava irremediavelmente picado pela mosca azul cigana. Então eu já era cigano de alma. Não via o tempo passar.

Estávamos os três no velho paiol, brincando como sempre brincam os jovens. No centro, presa em um olhal, estava a sobrechincha, com seu gancho ameaçador na outra ponta. E neste gancho eram pendurados arreios e outros apetrechos para evitar que fossem roídos pelos ratos. Normalmente, ela ficava inerte, porém, quando por ela passávamos, ao batermos nela com os dedos dávamos-lhe o movimento do pêndulo. Fatalidade, infelicidade, tristeza. Pedro Pião em corrida de fundo para a porta, com intenção de saltar para o curral, no meio do caminho, enfiou o olho esquerdo no gancho. A ponta se prendeu à pálpebra. Devido à aceleração ele não parou e, por milésimos de segundo, foi suspenso ao ar. Ah, meu Deus! Que lembrança sofrida.  Então, a pálpebra se rompeu, ele rolou aos gritos, sangrando demais. Correria, pedidos de socorro; minha mãe acudiu, pôs uma venda de trapos queimados no olho rasgado, na tentativa de estancar o sangue.

Marco desaparecera veloz como o raio. Pouco depois, retornou do acampamento, seguido por um velho. “É nosso curandeiro, disse ele”, vai sarar Pedro. Realmente, o curandeiro examinou atentamente o olho de nosso amigo e nos disse que apenas a pálpebra dilacerara; nada acontecera no globo ocular. “Vou curá-lo”, disse o velho olhando Pedro fixamente, um olhar que expedia relâmpagos. Pedro imobilizou-se, o curandeiro, que na língua dos ciganos chama-se kaku, pediu linha e agulha e simplesmente costurou a pálpebra rompida. O que me chamou a atenção foi o fato de que Pedro não deu um ai, não chorou, nem parecia sentir qualquer dor. Finda a tarefa, o curandeiro falou: “Preciso levar o chavo (rapaz) por uma semana, pois tenho que fazer curativos todos os dias”. Os presentes concordaram, e os dois foram embora. Na semana que se seguiu, todos os dias eu ia visitar Pedro, que estava cada vez melhor. Foi devolvido aos pais logo, logo e inteiramente são apenas ficara a cicatriz tênue para marcar o acidente. Desde então, os doentes do povoado fizeram fila na tenda do kaku. O que ele usava? Que tipo de benzedura fazia? Que sortilégio executava? Não sei, mas todos ficavam satisfeitos, elogiavam o cigano, mandingueiro, davam-lhe presentes e dinheiro. E os ciganos iam ficando... Demorando... Demorando...

Certa feita, os ciganos resolveram dar um espetáculo para os habitantes do lugar. Montaram um circo mambembe no final de uma rua e saíram fazendo a maior propaganda. Meu tio, Jovelino, me levou, junto com Pedro Pião, para assistir o espetáculo, no caminho topamos com um cigano que com a boca pintada de vermelho, fazia papel de palhaço, sobre imensas pernas de pau. Percorria a estrada ou rua para cima e para baixo gritando:

“Hoje tem goiabada?” “Tem sim, sinhô!” Respondia a meninada.

“Hoje tem marmelada?” “Tem sim, sinhô”.

“Hoje tem espetáculo?” “Tem sim, sinhô!” Era a molecada toda entusiasmada.

O arlequim, de nariz de tomate e faces vermelhas, tocava a corneta de lata, desafinada e voltava a questionar:

“Oito horas da noite?”

“É sim, sinhô!” Afirmavam as crianças.

“Tem palhaço no circo?”

E a meninada. “Tem seu doutô!”

E o truão: “O palhaço o que é”?

“É ladrão de muié!”

“O raio de sol suspende a lua!”

“Olha o palhaço no meio da rua!”

E o tambor: bum! bum! bum!

Aí um segundo palhaço, montado com a cabeça voltada para o rabo do quatralvo, secundava:

“Hoje tem arrelia?”

“Tem sim, sinhô!” dizia a meninada.

“No nariz da tua tia?”

“É sim, sinhô!”

“Hoje tem borogodó?”

E os garotos:

“No nariz da tua avó!”

Gargalhada geral e os meninos assobiavam, plantavam bananeiras, batiam palmas e as meninas, mais contidas, sorriam, davam gritinhos, rodavam as saias. Digo a verdade, também participei da festança. Todos corriam às janelas apreciando a alegria da garotada. Curiosíssimos, fomos assistir à função e lembro-me, muito bem, de que um dos números era de equilibrismo. Um dos saltimbancos, no meio do palco, posicionou firme, sobre o ombro, uma vara de bambu. Outro acrobata, mais novo, quase uma criança, subiu rapidamente até à ponta da vara. Lá, com técnica, cuidado, vagarosamente, imperceptivelmente, se movimentou até ficar em posição horizontal, qual um relógio marcando meio-dia e quinze. Continuando o movimento, ficou de ponta-cabeça em relação ao palco. Depois desfez o exercício e voltou ao picadeiro que era de chão batido, sendo aplaudidíssimo pela ínfima plateia. Depois, fomos brindados com excelente número de violino, uma moça dançava; claro, a dança dos ciganos. O último espetáculo foi um teatro de marionetes. Depois passaram o chapéu e receberam um dinheirinho adicional.

Ferruti”, assim meu tio me chamava. “Você acreditou no que viu?” Perguntou-me. Disse que sim, ele afirmou que era fraude o malabarismo da vara e que tínhamos sido hipnotizados, enganados. Se o que vimos fosse verdade, a vara teria enfiado pelo ombro adentro do artista, em vista do peso do garoto. Por aí se vê o quanto atrasados, ignorantes éramos nós, moradores daquela aldeia.

Tudo que é bom termina de repente “Não há bem que sempre dure”. Diz o povo. Já havia me acostumado com a presença dos ciganos e com as brincadeiras de meu amigo Marco. Mas um dia ele veio a mim, cedinho, tristonho, falou: “Vamos embora...” “Por quê?” perguntei, “passou tão pouco tempo!” Passara mais de mês e não me dera por isto. “É que sumiram alguns cavalos e outras coisas por aqui e estão pondo a culpa em nós”. “Ah! Não acredito vocês não fariam isto, ou fariam?” “Não, mas nossa sina é esta: ser acusado ou culpado de tudo de ruim que acontece quando estamos por perto. Quando chegamos num lugar, muita gente má aproveita nossa presença, fazem roubos e nos acusam. Não temos como nos defender, meu povo só pode fugir sempre fugir... sempre. Nunca tenho amigos por muito tempo.”

Procurei minha mãe, pedi e implorei que defendesse os ciganos, mas ela nada podia fazer. “O zum-zum-zum está muito forte”, disse-me. Não desisti, fui ao delegado, levei Pedro Pião, dois garotos, apenas dois. Falamos, juramos, pedimos, sem sucesso. O delegado nos ouviu com olhos zombeteiros, irredutíveis: “Quem eram esse dois fedelhos para defender os ciganos! Pois sim!”

“Meninos, acredito que vocês têm amizade aos ciganos, olhem, pensem bem, aqui nunca aconteceram roubos, foram sós eles aparecerem... começaram os sumiços de cavalos, galinhas e porcos...” “Sô Chico Rita” (este era o nome do delegado)! Nós juramos que os ciganos não roubaram nada! “Vamos todos os dias ao acampamento, nada vimos de errado”. “Meus filhos, vocês são muito verdes, não conhecem as mazelas do mundo, os ciganos são espertíssimos, chegam a pintar o animal pra evitar que o dono os reconheça, alem disto a reclamação é do sô Zezinho, que pediu providências já”.

Não conseguimos demover o delegado da intenção não declarada de prendê-los para interrogatório e fichá-los. Desolados, voltamos a minha casa, para contar à mamãe o fracasso de nossa embaixada. “Não falei! O senhor Chico Rita vai prendê-los mesmo, tenho certeza, é pena, estava começando a gostar deles”. “Mas mamãe!” insisti. “Onde estão os cavalos roubados? As galinhas? Os porcos? E roupas?” “Não sei”, me disse ela “pode ser que alguns ciganos tenham partido antes, levando cavalos roubados e comeram os porcos, galinhas e talvez tenham escondido coisas roubadas sob roupas, nas canastras.”

A sorte estava selada, quando os ciganos fossem, a minha vida seria um marasmo sem fim, quietude até à morte, sempre à janela esperando ver nova coluna de andarilhos passarem. “E se isto se desse, traria outro Marco?... Até lá, sim, sofreria com o ‘nada acontece’ por aqui... Vida muito calma, igualzinha à da minha mãe e de todos os moradores deste maldito povoado, dormente, doente, à beira da estrada da Sesmaria”.

À meia-noite, ouvi ligeiro arranhado na janela, como se alguém ou meu gato “pensei”, quisesse entrar, porque fazia frio. O arranhado persistiu, seguido por uns toc, toc, toc; gato não faz toc-toc. Por fim, joguei a preguiça de lado e também os cobertores pulei da cama, abri a janela, o que vejo? Meu amigo Marco, o cigano. Ele veio se despedir de mim; falou, por alguns instantes, da vida sob as estrelas, da liberdade, das cavalgadas, de lugares distantes, das tendas, do antigo Egito e do amor entre gentes de seu povo, do casamento cigano etc. Pulou a janela e desapareceu, foi embora sem me abraçar.

Naquela noite fria, não pude dormir, revirei, briguei com o travesseiro. Ainda de madrugada, talvez fossem cinco horas, resolvi revisitar o acampamento cigano. Precisava ver e esclarecer e sentir... Notei um movimento febril, sombras que iam de um ponto a outro, vozes abafadas, barracas sendo desmontadas, estais sendo arrancados. A fogueira se extinguia em um monte de brasas com alguns lampejos tímidos de fogo. Decepcionado, voltei a casa e desabafei: “Mãe, acredite, os ciganos vão partir!”

“Menino, não te falei? Eles são como a neblina e a cerração, desaparecem com o sol. Aproveita o tempo, vai capinar o quintal, a terra está macia... vamos colher muita melancia e feijão-de-corda...”

“Meu Deus, a mesmice sem fim! Quando viria outra caravana?”

À noite, minha cama ficou vazia, a caravana cigana ganhou novo membro.

FINIS

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