O   Ú L T I M O   R A I O   D E   L U Z
Estória de um menino cigano e seus devaneios

por Asséde Paiva
postado no Benficanet em 09/12/2015

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Mirko, o ciganinho, tinha treze anos, parecia dez. Miúdo, esperto, inteligente, preguiçoso e sonhador. À noite, principalmente nas noites estreladas permanecia horas observando, imaginando como as estrelas seriam belas e brilhantes, se vistas bem pertinho. “Será se piscavam?” E pensava... “Quem estaria lá?” E respondia para ele próprio: “Vurdons (carroças em romani, língua dos ciganos), onde erravam pelo firmamento, nos caminhos do arco-íris, acampando vez por outra na Lua, ou em Vênus e os ciganos tocando violinos, pandeiros, em volta de grandes fogueiras”. Ele adorava ficar na tenda, pela manhã e só saía quando o sol estava bem acima do horizonte. Seus pais achavam que ele queria dormir até tarde, mas não era bem isto, Mirko tinha razão especial e particular para ficar na tenda. Era visitado por um Raio de Luz, logo que o sol aparecia. Mirko esperava ansioso o feixe de luz, fino, contínuo, conforme a fenda da ‘tchera’ (tenda) se abria, infiltrava pela fresta e iluminava pequena moeda de cobre sobre palha no chão. Ricocheteava aos olhos profundos, como o oceano, de Mirko, os quais brilhavam estranhamente, como se tomados por intensa e misteriosa força. Suspirava e se escorava no espeque da lona para não cair, nem prejudicar o visitante. Era caso complicado, difícil de entender: Raio de Luz era Mirko? O contrário podia ser... Seriam os dois só um? Não dava pra perceber.

 

- Pequena luz, de onde vem? “De longe, Mirko, além do seu pensamento, das profundezas do céu, do infinito, mais longe do que as nuvens azuis bordejantes nas estrelas”. ¾ Pode me levar lá? “Um dia, sim respondia Raio de Luz, evasivamente, vagamente”.

- Qual é o seu nome?

- Raio de Luz.  Venho de uma estrela da constelação Ursa Maior... Os homens dividiram o céu em pedaços e deram-lhes apelidos daqui da terra; porém, o céu é único, é esférico. Tem constelação da Serpente, Cão Maior, Touro, Escorpião, Pavão, Cisne etc.

- Tem a do Cavalo? Não! tem a nebulosa da Cabeça de Cavalo que está muitos anos-luz daqui, falaremos disto mais tarde... Ainda vou levá-lo às Três Marias, Betelgeuse, Capela e Aldebarã, prometo!

- Nossa mãe da tribo observa as estrelas quando lê buena-dicha. Ela vê nossa sina no céu, nas mãos, nos olhos e nas cartas... Mirko era desperto dos devaneios pelos pais os quais escancaravam as lonas da tenda e o punham para fora.

 

À noite, hora da rã, a lenha recolhida por todas as crianças, servia para alimentar a fogueira e preparar gostosa sopa, bem assim, iluminar as danças, aquecê-los nas noites frias. Raio de Luz jamais aparecia à noite. Mirko perguntou por quê? “Na escuridão sou invisível, somos diferentes por natureza: onde estou, há luz, onde há trevas é noite. Ela também é boa, muitas coisas se fazem quando ela vem: os homens dormem para descansar das lutas do dia, as plantas limpam o ar que respiramos, as flores desabrocham. Homens temem o escuro, mas ele é tão necessário como a luz. O mundo é dividido em opostos: alto/baixo; quente/frio; claro/escuro; bom/mau. Vamos encerrar, porque está anoitecendo, voltarei amanhã”.

 

Mirko gostava de observar o povoado dos não ciganos, do outro lado do rio. À luz do dia, as casas pareciam tristes e muita fumaça subia ao céu. À noite, quando luzes brilhavam no céu estrelado, ele devaneava. “Como seria aquele local? E as pessoas? Os meninos seriam iguais a ele? Apanhariam lenha no mato? Onde dormiam e o quê comiam? Seriam bons?”

 

Encheu-se de coragem e pediu ao pai para levá-lo à cidade. Em princípio, o pai relutou, ele insistiu, insistiu e venceu pelo cansaço. ¾ Amanhã, você vai comigo, vou vender cavalos e tachos na cidade. Mirko dormiu cheio de curiosidade e ansioso. No dia seguinte, não pode conversar com o amigo Raio de Luz, contou-lhe estar preste a conhecer outras pessoas, porque iria ao arraial com o pai. Pai e  filho, ciganos foram  ao povoado. Avistados pelos moradores da periferia, Mirko teve o primeiro susto: o pessoal parecia evitá-los, os encaravam com nojo e raiva, mulher gritou:

 

- Prendam as galinhas!

 

Seu pai, humilde, cumprimentava transeuntes, na maioria das vezes, sequer lhe retribuíam.

 

- Pai, por que as pessoas não gostam de nós? Meu filho, isto é problema de mil anos e mil anos mais. Somos párias, escorraçados dos lugares do mundo. Meus pais e os pais de meus pais contam a lenda de que nos perseguem porque roubamos um dos cravos da crucificação.

 

- Conta pra mim esta história...

 

- Talvez, um dia... nada explica por que nos rejeitam. Chamam-nos ladrões, trapaceiros e nos culpam por crimes. Dizem que roubamos criancinhas... É mentira, mas o quê fazer? Nossa sina andar e andar, porque não nos dão trégua. Se há crime e por perto há cigano, é considerado ‘culpado’. Filho, somos independentes, ordeiros, pacíficos e adoramos nossa liberdade, parecem ter inveja de nós.

 

- Fora vagabundos! ¾ Gritou a mulher. - Fora!

 

Jogou-lhes pedra, por sorte, não os atingiram. E os ciganos caminhavam, rua acima. Vez por outra, o pai de Mirko oferecia vasilhames, ou cavalos que trazia pelas rédeas. Quando passaram por construção maior escutaram a algazarra das crianças da escola. Olharam para elas pouco interessados, foram vistos. Estudantes correram para eles, sendo contidos pela cerca.

 

- Ciganos molambentos! Ladrões! Eles estacaram sabendo serem objetos daquela curiosidade infantil. Seus olhos negros não demonstravam o receio que sentiam por dentro. A professora, loura de dezenove anos, aproximou-se e ralhou com os alunos.

 

- Parem crianças! Deixem estes pobres em paz, vão para as salas ou castigarei vocês! Os olhos de Mirko cruzaram com os de linda menina de cabelos dourados e cacheados. Tinham mais ou menos a mesma idade. Parados, olho no olho, mergulharam nas profundezas de seus seres, descobriram-se almas gêmeas. É momento inesquecível, quando duas almas se fundem sem saber por quê.

 

A noite foi diferente para o menino, pois não conseguia esquecer a lourinha que vira na escola. Sequer participou dos festejos noturnos sempre alegres, com as ciganas jovens dançando, girando as saias estampadas, sacudindo pandeiros enfitados, enquanto jovens ciganos tocavam violinos e guitarras. Alegria cigana é notável, exceto para Mirko.

 

Ao amanhecer chegou Raio de Luz disposto a conversar. Seu amiguinho não queria ouvi-lo, tão distraído, ausente “Que você tem? devo ir” perguntou Raio de Luz.

 

- Falaremos amanhã, disse Mirko. Tenho um pedido a fazer a meu pai, estou me preparando para ouvir o não que me vai fazer sofrer. “Insista, amigo, fale com meiguice, ele o ouvirá, tenho certeza. Parto, você está distante”.

 

O ciganinho saiu da tenda e foi procurar o pai que amestrava cavalo. Diz o pai, “é seu”, pois notara a chegada silenciosa. Em outra situação, Mirko daria pulos de alegria, porém, no momento, tinha pensamento diferente, longe de cavalos.

 

- Pai, eu quero estudar! O cigano estremeceu, paralisou.

 

- O quê? Isto não é possível, nós, ciganos, não temos escola, o que precisamos, aprendemos com nossos velhos.

 

- Pai! quero ir... “Ora, meu filho! Eles são diferentes de nós. Não nos aceitam. Eles criam raízes em um lugar, vivem e morrem nele; nós viajamos daqui pra ali. De repente nos ataca vontade louca de caminhar e caminhamos, sem destino certo. Somos filhos do vento e da estrada, não tardaremos partir” Pai, ainda assim, enquanto eu ficar aqui vou à escola. “Está bem, mais tarde vou apresentar seu pedido ao conselho dos anciãos e aceitarei o que decidirem”. Felizmente, para o ciganinho, a decisão lhe foi favorável, seu pai levou-o à cidade para matriculá-lo. Quando chegaram, foram recebidos pela professora. Ela foi informada de que o filho iria estudar só enquanto eles não levantassem o acampamento. A moça ficou surpresa, bondosa, gostava de ensinar.

 

- Você quer estudar? Geralmente crianças da sua idade gostam é da folia! Vai começar pelo abc. Pode deixá-lo comigo, senhor.

 

Mirko iniciou nova vida. Infelizmente, mal falava a língua dos não ciganos e foi motivo de cruéis chacotas. Na hora do recreio, foram para o pátio; logo os demais alunos souberam que entre eles havia cigano, rodearam-no, encheram-no de perguntas, beliscaram-no, empurraram-no e pregaram chicletes no seu cabelo. Fizeram-no gato e sapato e lhe deram oh, cruel maldade! um pedaço de sabão que ele, inocente, levou para casa. Os colegas consideravam o ciganinho indigno de participar na escola e da comunidade. Certa feita, ele tão acuado foi, que saiu correndo pelo portão, indo se esconder atrás de uma árvore. Perseguiram-no, ele era meio selvagem, se refugiou no bosque.

 

- Quer conversar comigo? Perguntou a menina de cabelos dourados, que o vira se esconder. Então, os dois correram pela planície que se lhes deparava pela frente, se escondendo, pulando valas, subindo nas pedras, colhendo ramadas, extasiando-se com o chuá, chuá das águas do regato, ou retorcendo galhos das árvores. Cansados, sentaram e riam, enquanto faziam bonecos com a lama apanhada no córrego. A menina lhe disse chamar Lucy ele disse o dele ser Mikael ou Mirko! (Cigano adota três nomes: um usado na comunidade; outro, entre não ciganos e o terceiro, a mãe lhe sopra no ouvido quando nasce para protegê-lo dos maus espíritos).

 

Disse-lhe que tinha quatorze irmãos e, diante do espanto da menina, informou-lhe de que todas as famílias eram grandes. Mirko colheu flor e prendeu-a nos cabelos de Lucy. Disse-lhe brincando: parece ‘romi’ (ciganinha).

 

Passaram tempos. Ele continuou a frequentar regularmente a escola. O aprendizado era lento, nem se importava, tinha Lucy era o bastante. Ela o levou a casa, apresentou-o aos pais que, a princípio, deram ar de desgosto. Logo viram que o menino era inofensivo e permitiram a continuidade da amizade. Mirko ensinava Lucy sobre a vida no campo ao ar livre, ela lhe ensinava o a vida na cidade.

 

- Pai pediu ela, posso ir ao acampamento dos ciganos?

- Nem pensar! ralhou a mãe.

– Mamãe, meu amigo mora lá e não é perigoso, ele me convidou...

- Afaste-se daquele menino!”

 

Mirko foi proibido de voltar à casa de Lucy. “Não tinha importância”, pensou, “continuariam a se falar na escola”. Lindo, aquele par. Ele, moreno, magro, alto e com sorriso permanente. Olhos tristes, ora ofuscantes, ora opacos, cabelos  esvoaçantes ao fraco vento. Usava cordão de ouro e brinco na orelha esquerda. Ela, loura, onde raios de sol iam beijar e deslizar em cascatas, olhos garços. Um dentinho, torto, lhe dava charme invencível; diferentes quanto ao físico, iguais quanto à sensibilidade.

 

- Vou te ensinar palavras da nossa língua; meu pai diz ser o romani. Nosso Deus e o seu é o mesmo, nós falamos ‘Devel’; festa de casamento éabieu’;’ beng’ é o diabo; ‘bibaxt’ é azar; ‘braxt’ é sorte; ‘chuquel’ é cachorro; ‘daj’ é nossa mãe; ‘dicrô’ é lenço; ‘grast’ é cavalo. Mirko viu um cavalo e correu a ele.

 

- Nós amamos cavalos, são eternos companheiros. Gostamos também de vacas e cachorros. Somos avessos a ratos porque são impuros. Comemos ouriço. Vamos voltar? Estão nos chamando. E eles sempre trocando ideias. Lucy tinha insaciável curiosidade sobre costumes do povo cigano. Aos poucos aprendia sobre injustiça, mal-entendidos, maledicências que fizeram contra esse povo ao longo dos séculos.

 

- Amamos as crianças, elas são motivos de cuidado. O bebê é especial, pois, traz muita esperança. O bebê significa continuidade e fortalecimento do nosso povo. Quando nossa mãe vai dar à luz, fica isolada por quinze dias, até se purificar, numa tenda especial. E, quando morre alguém, há tristeza e choro, é o ‘janhar-nípen’. O morto é retirado da tenda, lavado e envolto em toalha limpíssima. Tampam-lhe o nariz e boca para que o espírito não volte e torne-se ‘mulô’, fantasma. Três dias depois da morte fazemos festa, a ‘pomána’, onde comemos e bebemos de tudo que o morto mais gostava. Uma cadeira fica livre, pois acreditamos que ele comparecerá, em espírito. Depois, restos de bebida e comida são postos na cova ou jogados fora. E seus pertences são queimados. O casamento é bonito. Somos prometidos um ao outro, pelos nossos pais, desde crianças. O noivo ‘compra' a noiva, de brincadeira. Temos, também, a cerimônia da jarra de barro: Os noivos bebem vinho nela; o ‘barô’, o chefe, joga-a ao chão e diz: “Quando estes pedaços se juntarem, será o fim do amor”. O amor será eterno. “Lucy bate palmas. Quando me casar, vou querer casamento cigano”.

 

Não há bem que sempre dure... Um dia Lucy faltou à aula, no dia seguinte, também, no outro e no outro. Mirko se encheu de coragem e perguntou à professora pela menina Lucy. Ela lhe disse que estava doente. Nada poderia impedir que Mirko fosse visitá-la e assim o fez. Foi repelido na porta. “Saia você não é bem-vindo aqui! Você é sujo!” Descontrolado, talvez se julgando culpado pela doença. Mirko fingiu obedecer. Deu volta em torno da casa, pulou a janela do quarto de Lucy, aproximou-se da cama, ela cochilava. Segurou-lhe a mão e apertou docemente. Lucy delirava, balbuciava palavras incoerentes. Eis que a porta do quarto se abriu, Mirko se escondeu. Adentraram os pais da menina acompanhados por senhor portando maleta: um médico, na certa. Pelo sacudir da cabeça do doutor o caso era preocupante. “Febre alta demais” Ao fechar a porta. Mirko saltou a janela, correu ao acampamento.

 

- Mamãe, o que cura febre? “Elixir de serpente. Por que você quer saber?” Minha amiga na escola está doentinha. Você vai dar nosso remédio para a chey (moça)? Ele deitou, fingiu dormir. Madrugada, levantou-se pé ante pé e pegou o vidro na bolsa da mãe, o elixir contra febre, feito de pó misterioso: menta, camomila, tília, cabeça de cobra (diziam), em infusão. Saiu correndo, entrou pela janela, como sempre e despejou três gotas nos lábios de Lucy. Ela estremeceu. Mirko ficou atento a qualquer reação. A doentinha entrou numa espécie de sonolência. O pai da menina tentou expulsar Mirko. Diante da pertinaz resistência, decidiu ir ao acampamento cigano, pois não queria complicações. “E se o garoto pegar a doença...”

 

Os ciganos buscaram Mirko à força e decidiram partir no dia seguinte. À noite, ele fingiu deitar cedo, enquanto ouvia o som das tendas sendo desarmadas. Rastejando, passou por abertura e desapareceu no mato, tendo por testemunha o vento sobre as folhas das palmeiras. De madrugada, já estava ao lado de Lucy. Aprendera abrir a janela e entrar sorrateiro. À luz do dia, grande surpresa: os ciganos estavam do lado de fora em algazarra, tentando chamar a atenção do pessoal da casa. Era a barulheira terrível e ninguém se entendia. Por fim, os envolvidos resolveram dialogar.

 

- Seu filho está aqui, sim! disse o pai de Lucy, é impossível tirá-lo do quarto, por mim pode levá-lo, ele prefere morrer, nunca vi nada igual, tamanha determinação e dedicação! “Ficaremos aqui, nós ciganos jamais abandonamos os filhos e os velhos!” Entraram em acordo: Os ciganos permaneceriam à curta distância da casa e o pai de Mirko poderia entrar e conversar com ele quando quisesse. O ciganinho à noite podia ministrar as gotas supostas milagrosas. Era tudo que ele queria.

 

”Oi!” Era voz conhecida que há tempos sumira. Raio de Luz adentrara pela cortina aberta. — Você aqui, bom amigo! Aos olhos de Mirko voltaram o brilho misterioso. “Demorei porque queria lhe dar tempo para cuidar de sua amiga, creio que ela está melhorando. Suas faces estão rosadas, a febre baixou! Sim, ela vai melhorar e você deve pagar por isso... Ficou tempos com ela, a doença pega...”

 

- Vou ficar doente também? perguntou Mirko. Ele sentia-se fraco, febril, com muita dor de cabeça e a nuca enrijecida. Não se preocupou com ele próprio porque a amiga merecia toda a atenção. Sacrificava-se por ela.

 

E por quinzena, ciganos do lado de fora, sem arredar o pé, ficaram esperando, esperando... Todos os dias, Raio de Luz aparecia no quarto, visitando o amigo. Mirko que definhava. “Você está fraco, tome do remédio milagroso, aconselhou Raio de Luz.”

 

- Dei tudo para minha Lucy.

 

Choradeira e gritos histéricos entre ciganos. O pai de Mirko impôs silêncio. O cortejo de cigano saiu da cidade levando o doente. Pararam no acampamento provisório. Ciganos de pé, em semicírculo, esperando... Ao primeiro clarão, Raio de Luz pôs-se a brilhar na face de Mirko. Miríades de estrelinhas desprenderam do corpo exangue. Ele, agora, era pura energia. O curandeiro, sensível como quê, bradou: “Tavelertô! (Vai com Deus!)”. O menino sorria. Não teria mais fome, tristeza, dor, nem sofreria preconceitos; estava livre, leve... Mirko/Mikael voou veloz, feliz e faceiro para cavalgar a nebulosa da Cabeça de Cavalo.

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