ESTAVA ESCRITO
(o amigo cigano)


por Asséde Paiva
postado no Benficanet em 11/05/2017

1206 acessos.

O que eu sou é um nada; isto dá para mim e para o meu gênio
a satisfação de olhar a minha existência no ponto zero;
entre o frio e o calor, entre a sabedoria e a estupidez,
entre alguma coisa e o nada, como um simples talvez
.
(Werk)

Plaft! Plaft! Os tabefes fizeram aquele barulho de plástico cheio d’água quando jogado ao chão. Atordoado, o atingido deu dois passos atrás, e em equilíbrio instável, ajoelhou.

— Sai daqui, pilantra! Rugiu o leão de chácara um brutamonte. E não volte mais, senão!...

Deixou pairando no ar a ameaça de mais surra.

O coitado levantou-se sacudindo a poeira invisível da calça amarfanhada, disse meio grogue:

— Eu sou homem, não aceito desaforo! Comigo, não!

E tentou avançar. Foi, porém, detido por braço forte. Alguém lhe sussurrou no ouvido: “Não tente, vai apanhar mais.” O bêbado, pois ele estava totalmente alcoolizado, contentou-se em repetir:

— Eu sou home! Não levo desaforo para casa... filho da puta!

Atravessaram a avenida Rio Branco e foram a um bar.

— Por que está me ajudando? Não te conheço!

Ele, o bêbado, notou que o bom samaritano era jovem e usava chapéu com abas caídas Tinha um brinco enorme na orelha esquerda.

Aproximaram-se do balcão, o bom homem pediu um café amargo para o bêbado e para si uma mistura excêntrica que chamou de bomba atômica.

O borracho, após tomar o café, correu para fora abraçou o poste e vomitou: uuuuuóóóóóó.

— Como te chamas, amigo? perguntou o estranho.

— Eu sou ninguém. Pode me chamar assim. Sou nulo! Um homem invisível, tenho este dom, ninguém me vê...

— Não entendi, explique melhor, por favor!

— Ninguém gosta de mim, as rameiras não me toleram. Sou um poço de fracassos. Tenho um milhão de anos de fracassos.

— Você precisa de um pouso. Vamos procurar um hotel. Oh, belo anel o seu! Vende?

— Qual é o seu nome? perguntou João-ninguém.

— Josa, o hotel São Paulo, não é longe, tem algum dinheiro para o pernoite?

— Não, não tenho, fui roubado na boate pelas mulheres que dançavam furando aquele cartãozinho de minuto em minuto.

— Está bem, pagarei para você como empréstimo. Se você não me pagar aceito este anel de esmeralda. Antes de entrarmos, me conte um pouco da sua história.

O bebum desenrolou sua novela:

–– Oziel, meu nome lembra zero. Zero à esquerda da vida. Desde muito, absolutamente excluído. Na escola, não me chamavam para brincar; nos jogos, me deixavam de fora; o exército me dispensou por excesso de contingente. Nas reuniões, ninguém pedia minha opinião, nos negócios, meus sócios me passavam pra trás. As garotas nunca me querem; jamais tive uma namorada. Como filho do meio, todos os favores e benefícios foram para o primogênito. Zombavam da minha maneira de ser: retraído, inibido, sempre nos cantos. Ai de mim! Para uns o boi dá leite, para mim a vaca seca.

— Vamos ao que interessa como conseguiu este anel tão valioso?

Oziel deu um gemido ou rosnado de pura revolta, deu de ombros e não respondeu.

O elevador do hotel estava quebrado, então subiram por uma escada de ferro, em caracol.

— Até amanhã! Voltarei para levá-lo a passear por aí. Tranque bem a porta e cuidado com seu anel que me parece genuíno.

No dia seguinte, após almoçarem, foram passear no calçadão. Oziel observou três moças virem em direção a eles. Josa logo as conquistou, enquanto Oziel foi ignorado por elas.

— Viu como sou invisível? interrogou Oziel. Elas nem se dignaram a registrar minha presença. É assim, meu caro, não existo! No máximo, sou aquele que segura as cartas pros outros jogar.

— Ah, seja atrevido, sem ser estúpido! As meninas gostam de rapazes ousados, falantes, desinibidos, e preferencialmente endinheirados. Leve este dinheiro para pagar o hotel.

O amigo estendeu-lhe uma nota de cem reais que Oziel pegou, pois para isto não tinha mais pudor.

No fim da semana, Josa convidou:

— Vamos conhecer um bar cigano. Quer ir?

Na rodoviária, tomaram um ônibus para São João de Meriti. Saltaram num local chamado Fazenda Velha.

— Ainda não é aqui, temos chão pela frente. Vamos à Covanca, a pé.

Uma caminhada mais ou menos longa, após curva acentuada, desceram pequena elevação. Viram luzes tremulantes.

Oziel reparou que estavam perto de uma carroça fracamente iluminada. Havia muitos autos ao derredor. Duas lanternas tremeluziam nas laterais da carroça, como que os convidando a entrar. De dentro vinha o som de guitarra harmonioso, tocando ária cigana. Oziel tremia e temia outra derrota. No frontispício estava escrito em grandes letras: U vurdon. A carroça tinha cores berrantes e deslumbrantes, com desenhos em arabescos.

Josa deu três palmadas rápidas, linda moça afastou o reposteiro de lona e veio atender.

— Olá! Por onde tem andado? Quem é ele?

Apontou Oziel, com ar displicente e de pouco-caso.

— Viajei –– respondeu Josa. Depois fiquei na cidade e achei meu companheiro, ele é Oziel, viemos assistir seu show. Estendeu-lhe nota de cem. Explicou ao amigo que com pagamento adiantado podiam comer e beber a farta.

Lola, assim se chamava a moça, afastou-se e mandou-os entrar. Não havia cadeiras, só tapetes, esteiras e almofadas, dispostas em torno de um palco de madeira. Os frequentadores lado a lado, circundavam o tablado, gritavam, riam e batiam palmas. “Bravo! Bravo”! Uns assoviavam. Uma mulher sensual saracoteava e rebolava entre os convidados. Com a garrafa de vinho na mão, foi aos recém-chegados. Era cigana.

— Ah! Faraona, me dá um gole de vinho, pediu Josa!

Os enfeites nas paredes consistiam em pequenos tachos, frigideiras, panelas e chaleiras. Havia também ânforas, bilhas, moedas, estrelas, luas e sóis de cobre, no teto.

Afastando a cortina de chita estampada de flores, pisou no palco a dançarina com castanholas e distribuindo sorrisos a mancheias.

Metade da cobertura foi puxada por dois homens (no sistema de engrenagens e roldanas). As lâmpadas foram apagadas e o interior da carroça foi inundado pela luz da lua. Êxtase, momento de rara beleza, magia e encantamento.

–– Quem quer bater cartas, ler as mãos, ver a sorte na borra de café? Ou na bola de cristal, quem vai?

Oziel estava fascinado pela beleza dançarina, Lola. O sorriso dela mostrara os dentes perfeitos, alinhados. Ela veio sentar-se ao lado de Josa e puseram-se a conversar sem dar a menor atenção a Oziel, porque ele era invisível, não é? Inesperadamente ele se levantou e falou trêmulo:

— Vou saber o porquê da minha mala suerte..

A quiromante e ele se olharam. Os olhos dela, candentes como dois carbúnculos, desnudaram-no da cabeça aos pés. Ele viu que a mulher era muito bonita.

Após a leitura, ele retornou menos triste, em sua cabeça ecoavam as palavras da vidente: “Ainda encontrarás um grande amor, pois as cartas não mentem jamais”.

No ápice da festa, gritaram os fregueses:

— A dança do fogo! A dança do fogo!

Todos abandonaram a carroça e correram para fora. As moças, capitaneadas pela Faraona, dançavam ao som de uma concertina. Depois, cansadas, foram se sentar. Aí, os homens as substituíram. Quando os primeiros raios de sol faziam o amanhecer, a festa acabou.

Em consequência, Josa e Oziel tornaram-se assíduos naquele bar cigano, peculiar, mágico e místico. Daj, a Faraona, passou a ser generosa com ele, enchendo-lhe mais a caneca de vinho. Ele não notou, tão convencido estava de que era portador de um repelente de amor.

Josa um dia zangou-se:

— Estou cansado de suas lamentações. Se quiser ficar só, fique! Então, trate de me pagar. Se não tem dinheiro, me dê o anel.

Oziel ficou muito magoado, não esperava aquela demonstração de raiva. Virou as costas, largou o amigo falando sozinho, saiu. Chegou ao Hotel, cansado, abatido e desolado. Foi barrado na portaria.

— Não tenho dinheiro, mas amanhã vou empenhar meu anel e pagarei até o último tostão e me sobrará muito.

Tarde, muito tarde era. Talvez quatro horas da manhã. Um vulto esgueirou-se pelo corredor, indo ao quarto de Oziel. Abriu a porta com chave-mestra e deu uma bordoada na cabeça do sonolento hóspede.

No dia seguinte, Oziel viu seus cabelos empapados de sangue. Apalpou-se, nada havia quebrado, mas ao esfregar as mãos notou a falta do anel. Foi comunicar à portaria o fato.

— Vagabundo!... fora daqui!

— O porteiro empurrou-o para a rua.

Mais uma vez, Oziel estava sem dinheiro, sem amigos, sem a joia, sem lenço nem documento.

O mundo dá muitas voltas e Oziel tornou-se viandante. Um dia, se viu nas proximidades do bar cigano. Quanta recordação lhe veio à mente. “Por que fora lá?” Estava escrito...

Josa agora era gerente do bar, casara com Lola, a filha da Faraona.

Naquele dia, as parcas resolveram juntar os três indivíduos: Oziel, Josa e o porteiro. Josa reconhecera o porteiro do hotel e resolveu perguntar por Oziel. O cliente ostentava no dedo, um anel de esmeralda. Josa deduziu o que se deu e foi direto:

— Você roubou o anel do meu amigo, hein! Entregue, já! já! Começaram uma luta feroz. O porteir/gatuno foi dominado. Josa tomou-lhe o anel, pondo-o contra luz para melhor avaliar. Era inconfundível.

— Miserável! Onde está Oziel? Que maldade fez com ele?

Eis que entra o mendigo Oziel, irreconhecível por barba e cabelos desfeitos. Ele não vira a luta, mas viu a joia na mão de Josa. Tirou conclusões apressadas, erradas, injustas. Voltou-se sobre seus passos e desapareceu de vez, na escuridão. “Eis o que acontece quando se acredita em amizade, nunca tive nada na vida: dinheiro, amores, amigos. Ninguém me considerou como gente, fui derrotado em tudo; quando pensei ter encontrado um amigo, ele se revelou um ladrão. Que mais posso esperar desta vida? A cigana errou a predição: Não conhecerei o amor. Estou doente, cansado e desgostoso. O que me vem pela frente? É possível cair mais? Marginalizado pelo destino, tenho medo, sou covarde, mesmo... Deus tem uma missão para mim? Qual? Pois bem, renuncio à missão, tenho o livre-arbítrio”.

Nesta lucubração arrevesada, Oziel vencido se deu com os costados à beira mar e sentou-se na escada, ao nível do mar. “Cabeça vazia, oficina do diabo”. A água estava fria, suja, oleosa. A maré vazante findara, ia começar a preamar. Sentou-se e esperou: a água subiu aos quadris, ao peito... ao queixo... empapou-lhe os cabelos.

Uma cigana passou cantarolando:

Você é uma carta demais /No baralho da vida / Que o presente me traz.

A cigana interrompeu, pois observou, na água turva, o redemoinho em cabelos revoltos... “Seria o quê?” Sem pensar, desceu a escadaria, segurou a massa difusa e puxou com força.

“Meu Deus! É gente! Ele está vivo”.

— Socorro!

Maior foi a surpresa da Faraona ao verificar que se tratava de Oziel, seu freguês no bar cigano.

— Ah, meu amor... No baralho da vida, quem dá as cartas sou eu!

O Sol nascia tal como bola de fogo incendiando o mar. O dia prometia ser claro e belo... E Oziel finalmente, tornou-se visível.

E, no dia seguinte, cinzas, brasas e tições atestavam quão enorme e vazio era o vale da Covanca. Os filhos da estrada e do vento haviam partido, levando Oziel.

Estava escrito que seria feliz.

Vede bem: eu sou eu e além de mim não há outro! Sou eu quem mata e faço viver. Dt 32,39

© direitos reservados desde 2008 -  benficanet.com - contato@benficanet.com